DANÇA DA LEZEIRA DO SERTÃO DO PIAUÍ É GRAVADA EM ESTÚDIO ITINERANTE PROFISSIONAL
Na década de 1930, Mário de Andrade, então Secretário de Cultura da cidade de São Paulo, liberou verba para que um grupo de expedicionários gravasse em áudio diversos cantos populares do Nordeste. O Piauí estava no roteiro, porém, Mário foi exonerado do cargo pouco antes de a equipe chegar ao estado e a missão foi cancelada logo depois. Por isso, o projeto atual ganhou outra dimensão, precisamente quando a Missão de Pesquisas Folclóricas completa 75 anos.
Obviamente que em 1938 as dificuldades eram muito maiores, tanto em termos de acesso aos locais, com estradas inexistentes ou em péssimas condições, quanto com relação aos equipamentos e técnicas utilizadas para gravação. Porém, ainda que tardiamente, o Piauí vem sendo muito bem representado nas vozes de mestres e mestras como Seu Chiquim Ferreira, Gabiru, Seu Simpilício, Dona Mercê de Dula, Vicente de Cassiano, Dona Iraci, Lúcia do Tombador, Irene, Terezinha, João Biato, Seu Chico de Guilherme, Véim de Vicente, Zé Forró, Dona Da Luz, Raimundão da Mutamba, Godelo, Dona Rita, Naldim e Seu Pedim. Ao término do percurso, a equipe do projeto terá percorrido 6 municípios: Floresta do Piauí; Itainópolis; Picos; Paquetá; Santa Cruz do Piauí e Campinas do Piauí.
O objetivo é incluir definitivamente os cantos populares ancestrais do Piauí no cenário cultural nacional. Para isso, esforços vêm sendo feitos de modo contínuo, já que um estúdio itinerante é montado e desmontado todos os dias em um povoado diferente, a fim de que captações profissionais de áudio sejam realizadas.
Para se ter uma ideia do nível de profissionalismo da equipe, basta observar a aparelhagem que vem sendo utilizada. O estúdio itinerante é composto por uma mesa digital de 16 canais Yamaha 01v96i, que é interligada via USB com notebook, que por sua vez recebe os canais de forma separada. Os cantadores vêm sendo gravados com microfones de lapela sem fio Sennheiser, além de microfones omnidirecionais Shotgun, geralmente utilizados em cinema. Fora isso, microfones SM57/58 da Shure, uma caixa de som de monitor autoamplificada FZ 108 e diversos acessórios tecnológicos. Já as filmagens estão sendo feitas por uma câmera DJI Osmo Plus 4k e uma Canon EOS Ti5i. Sem dúvida, a equipe aposta no talento dos mestres de cultura do sertão do Piauí e leva a brincadeira da Lezeira muito a sério.
A dança da Lezeira é o maior foco dos atuais expedicionários e seu circuito abrange 6 localidades. Esta manifestação vem passando por gradual reconhecimento ao longo dos últimos 15 anos e pouco a pouco vem sendo reconhecida como a expressão da cultura popular mais representativa do Piauí.
No ano de 2008, o grupo de Lezeira do Quilombo Custaneira/Tronco foi agraciado com o Prêmio Culturas Populares “Mestre Humberto do Maracanã”, promovido pelo Ministério da Cultura. No ano seguinte, foi lançado o documentário “Lezeira”, de Ricardo Augusto e César Crispim, retratando a forma com que esta dança é executada nessa mesma localidade, numa parceria entre o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e a Associação Brasileira de Documentaristas do Brasil – Seção Piauí (ABD-PI),
Em 2021, o mestre Cantador de Lezeira Raimundão da Mutamba foi certificado Patrimônio Vivo pela Secretaria de Cultura do Estado. Já em 2022 o número de mestres cantadores de Lezeira intitulados Patrimônio Vivo do Piauí se multiplicou e mais 6 detentores dos saberes desta dança foram contemplados: Gabiru de Floresta e Seu Chiquim Ferreira (Floresta do Piauí); Dona Iraci do Tombador (Itainópolis); Dona Chica Tomé do Sobrado Grande (Wall Ferraz); Dona Rita de Custaneira (Paquetá) e Pai Pedim de Atrás da Serra (Santa Cruz do Piauí).
É justamente os grupos espontâneos de Lezeira que esses senhores e senhoras lideram em suas localidades que vêm sendo gravados profissionalmente. O circuito da Lezeira inclui ainda o povoado Boa Vista dos Borges, no interior da cidade de Picos.
Durante a cerimônia de certificação dos mestres no Palácio de Karnak, o Secretario de Cultura do Piauí, Carlos Anchieta, reafirmou o reconhecimento que a Lezeira vem obtendo nos últimos anos: “A grande Lezeira! Eu achava que leseira era minha vó brigando comigo: “Êta menino lesado!”. Lezeira é uma dança de roda que só existe no Piauí!”. Inclusive, demonstrando todo o processo de legitimação desta manifestação, há em tramitação no IPHAN pedido para que a dança da Lezeira do Piauí seja registrada como Patrimônio Cultural brasileiro.
Zé Dantas é experiente sonoplasta e produtor musical, trabalhou por cerca de 20 anos no Theatro 4 de Setembro, o mais tradicional de Teresina, onde atuou nos anos 1980 no Projeto Pixinguinha da Fundação Nacional de Artes (FUNARTE), com artistas de renome nacional, como Paulinho da Viola, Monarco e Canhoto da Paraíba. Além disso, Dantas produziu os discos de uma das maiores artistas piauienses de todos os tempos: Maria da Inglaterra.
Eduardo Pontin e Francisca Sousa são os pesquisadores responsáveis pelo mapeamento cultural que a equipe vem realizando, pois percorreram a região entre 2020 e 2022 conhecendo mestres e mestras de expressões populares. Como resultado desse trabalho de campo, irão lançar neste ano o livro “Lezô, Lezá, Vamô Vadiá, Nesta Lezeira: Ancestralidade e Simbolismo na Dança da Lezeira do Piauí”, que recebeu 1ª Menção Honrosa no Prêmio Nacional Sílvio Romero de Monografias sobre Folclore e Cultura Popular em 2022.
Já Roberto Sabóia presidiu por mais de uma década a ABD-PI, dirigindo documentários antológicos sobre manifestações culturais piauienses, como “Lá Vem a Barra do Dia” e “Cabeça de Bale”, entre muitos outros filmes. Sabóia é também Coordenador Estadual do Programa Cultura Viva, atuando junto a rede de Pontos de Cultura, composta de 80 entidades sem fins lucrativos que visam promover a cultura regional de 72 municípios do Piauí.
Autoridades locais vêm prestigiando o projeto, marcando presença nos dias de gravação. Entre elas estão o Prefeito de Floresta do Piauí, Milton Rodrigues (PT), além do Prefeito e Vice de Itainópolis, Miguel Rodrigues e João Batista (PRB), além da Secretaria de Educação deste município, Corrinha.
Os áudios dessas gravações acompanharão o livro de Eduardo Pontin e Francisca Sousa e também serão disponibilizados em plataformas digitais de forma gratuita. A ideia do projeto vai na esteira de Mário de Andrade, que registrava os cantos populares onde eles aconteciam: no terreiro, a céu aberto, sob o céu estrelado do sertão, com uma fogueira ao centro, para iluminar as pessoas que brincam, cantam e dançam.
Nas palavras do próprio Mário: “Está claro que quem sai do concerto ou do teatro de ópera, tem que se acostumar primeiro a ouvir o cantador dentro do seu meio natural que é o ar livre. Mas liberto do preconceito do belcanto europeu, encontra toda uma timbração e todo um estilo de cantar cheios de beleza”.
Os idealizadores do projeto viabilizado pelo SIEC-PI 2022 almejam que o maior número de pessoas possível possa apreciar a beleza e o valor ancestral da Lezeira e de seus cantadores e que esta manifestação cultural possa ser mais reconhecida Brasil afora, contribuindo para que ela seja tombada como Patrimônio Cultural brasileiro.
SONORIZAÇÃO INTERAUDIO